CONCEITOS

  • COMUNIDADES TRADICIONAIS

De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), artigo 2º, “populações tradicionais são grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há no mínimo três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”.

 

  • DISPOSITIVO

O conceito de dispositivo refere-se a um agenciamento de elementos tendo em vista uma finalidade, ou seja, atenta não só para aspectos da gramática dos artefatos, como para sua finalidade, demandando, nesse aspecto, um qualificador. De acordo com o professor Edmir Perrotti, “ser constituído e organizado para conservar, é diferente de ser constituído e organizado para difundir, que, por sua vez, é diferente de ser constituído e organizado para ser apropriado”.

A Estação de Memórias Cambury se caracteriza assim como agenciamento de elementos concretos e abstratos, pautados por critérios gerais de ordenação que visam aos processos de apropriação simbólica e de protagonismo cultural. A finalidade do dispositivo é infoeducar, uma vez que, no mundo contemporâneo, todos nós necessitamos estar permanentemente aprendendo a nos informar, seja nas escolas, nos ambientes de trabalho ou domésticos, nas bibliotecas ou outras instituições culturais e estas precisam, por sua vez, refazerem-se em função de tais demandas.
Diferentemente de outras estações culturais, a Estação de Memórias Cambury não disponibiliza apenas informações, mas visa à apropriação. Não pretende oferecer apenas o peixe, mas, ao oferecê-lo, ensinar sistematicamente os sujeitos a buscar significados nos oceanos dispersivos do universo da informação. Um metadispositivo de aprendizagem informacional indispensável aos processos de apropriação simbólica.

 

  • SABERES

Os saberes tradicionais são conhecimentos compartilhados por homens, mulheres, jovens e velhos de Camburi; fazem parte de um legado das várias gerações que ocuparam a região do litoral norte paulista; são saberes que estão expressos nos fazeres desses moradores e que têm forte relação com a natureza da Mata Atlântica. Entre esses saberes e fazeres acentua-se o conhecimento medicinal, fabricação de canoas, produção artesanal de farinha, culinária, pesca, roçado e usos múltiplos dos recursos naturais.

 

  • MEMÓRIA/EXPERIÊNCIA

Apoiamo-nos em estudos de Walter Benjamin sobre o narrador e a experiência (1993) e compartilhamos do entendimento de Ecléa Bosi que discorre sobre a quebra dos vínculos com o passado e a atual situação de pobreza em que vivemos, configurada pela subtração da experiência. Essa ruptura com a tradição fez com que surgisse uma “nova forma de miséria […] A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza”. (BENJAMIN, Apud BOSI, 1994). A consequência direta disso é que o discurso errante das famílias desenlaçadas gera um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre os sujeitos: a espoliação da lembrança (BOSI, 1994: 20); a arte de contar histórias decaiu porque perdemos a arte de trocar experiências. (Idem, 28) Ora, relegada aos limites estreitos da esfera privada, a sabedoria adquirida por meio da experiência corre riscos de não encontrar espaço para sua circulação no mundo contemporâneo, visto que modos de convivência atuais passam por transformações profundas, incapazes de assimilar conteúdos e modalidades de transmissão de signos herdados do passado.Com a perda de canais de produção e circulação da memória/experiência, vivemos um período de barbárie. Um mundo incapaz de atentar para a sabedoria própria das pessoas comuns e experientes, legado significativo das antigas às novas gerações. Segundo Benjamin, a ruptura entre vivências individuais e o patrimônio cultural humano é causa e consequência da “pobreza simbólica”, um novo estado de miséria — a que as atuais e futuras gerações estão submetidas. A experiência e a sabedoria dos velhos (construídas elas próprias pela herança cultural de outras gerações, acumuladas nas memórias e reelaboradas nas relações sociais cotidianas) entraram em crise na contemporaneidade. De acordo com outro autor: “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”. (BONDÍA, 2002: 24)

A memória contrapõe-se à barbárie, como trabalho de reconstrução, em que a atividade mnêmica assume função social exercida (aqui e agora) pelo sujeito que lembra, mas refere-se também aos registros externos deixados pelos homens e grupos ao longo de sua existência. Tais “vestígios” têm relação direta com o aparecimento de novas técnicas e tecnologias de registro, bem como dos usos sociais das representações produzidas e conservadas pelos grupos. Os grandes monumentos, as edificações que resistem ao tempo, perpetuando os feitos e realizações de povos e governantes ou as festas e rituais, que se mantêm vivos por gerações graças à sua repetição periódica, são exemplos da memória social e coletiva que “documentam” os modos de pensar, de ser, de ver e sentir dos indivíduos e grupos. (PIERUCCINI, 2006: 8)

 

  • APROPRIAÇÃO CULTURAL

Para Paul Ricouer, a apropriação é o processo pelo qual o leitor torna próprio aquilo que em princípio lhe era alheio, atualizando a sua historicidade ou significado do texto. O objetivo da apropriação como tornar própria alguma coisa, ou seja, adaptá-la a si e tornar seu, difere substancialmente do sentido de assimilação que é a “transformação que vai do diferente para o semelhante, do outro para o mesmo… [opondo-se] à diferenciação” (LALANDE, 1993: 94 apud PERROTTI & PIERUCCINI, 2007: 73). A apropriação supõe o entendimento de algo e a construção de significados fazendo do indivíduo um protagonista cultural, que, no âmbito da cultura e da educação são diferentes de usuários ou consumidores culturais; portanto, a “apropriação dos bens simbólicos não é ato simplesmente natural, mas culturalmente construído”. (PERROTTI & PIERUCCINI, 2008: 53) O conceito de apropriação cultural veicula a ideia ou ação que extrapola o tomar posse de algo material; no campo cultural refere-se ao plano simbólico, seu significado e legitimidade remetem a aspectos morais, psicológicos e emocionais do sujeito da apropriação que é um ser atuante, que protagoniza a ação de tornar próprio. Envolve a dinâmica da ação do sujeito sobre o mundo material e social, em que a apropriação “se dá através da internalização de conhecimentos, habilidades, e capacidades historicamente formadas. Esta interiorização é o centro da apropriação de sentido, intimamente relacionada ao processo de humanização. Portanto, é um processo cuja aquisição, instabilidade e busca de novos equilíbrios corresponde à dinâmica da identidade individual, uma experiência socialmente mediada pela educação”. (SERFATY-GARZON, 2003: 27-30)

A apropriação cultural significa, portanto, negociação simbólica entre repertórios culturais; significa estabelecimento de vínculos com o outro, sem perda de si mesmo, como forma de achar-se no outro: “Apropriar-se é transformar o que se recebe em algo próprio, é produzir um ato de diferenciação que se contrapõe a qualquer tentativa rígida imposta pela ordem dos livros, é a atividade de invenção, produção de significados. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Apropriar-se, portanto, é ação afirmativa, é invenção e criação e não simples recepção mecânica e automática de sinais ou de mensagens”. (CHARTIER apud PERROTTI & PIERUCCINI, 2007: 74)

 

  • MEDIAÇÃO CULTURAL

O conceito de mediação cultural é correlato ao de dispositivo e refere-se a um conjunto de elementos de diferentes ordens (material, relacional, semiológica) que se interpõem e atuam nos processos de significação; constitui, portanto, a ação de “servir de intermediário entre dois termos ou dois seres (considerados como dados independentemente desta ação)”. (LALAND, 1996: 656) Em se tratando de processo criativo numa cadeia de ações e negociações, o conceito remete à noção de colocar as coisas em relação, aproximar, criar pontes entre elementos. A mediação cultural é tomada aqui como categoria intrínseca aos processos de significação, portanto, essencial, condição que leva a considerar os elementos que constituem seus processos não simplesmente como ferramentas, mas como signos, portadores de sentidos, agregados à economia das significações. A mediação cultural é, pois, ação de produção de sentidos e não mera intermediação ou transmissão anódina de signos. Nesse sentido, os dispositivos informacionais são dispositivos de mediação e estão carregados de conceitos e significados. Necessitam, portanto, ser considerados além de suas dimensões funcionais. São processos simbólicos, discursos. Contam. Narram. (PERROTTI, E.; PIERUCCINI, I. Infoeducação: saberes e fazeres da contemporaneidade. In: LARA, M. L. L.; FUJINO, A.; NORONHA, D. P. Informação e contemporaneidade: perspectivas. Recife: Néctar, 2008, p. 47-96).

 

  • ESTAÇÃO MEMÓRIA

É um espaço cultural intergeracional que resultou originalmente de um projeto de pesquisa, criado pelo Prof. Dr. Edmir Perrotti e coordenado pela Profa. Dra. Ivete Pieruccini, ambos da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP). A Estação Memória de São Paulo foi desenvolvida em parceria com o Departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; seu principal objetivo era construir um novo serviço de informação que atuasse na educação das novas gerações por meio de processos de trocas culturais intergeracionais, de contato de crianças e jovens com a memória/experiência dos idosos.

A iniciativa partiu de um conjunto de reflexões críticas em torno da crise dos mecanismos tradicionais de transmissão de cultura, geralmente pautados no paradigma conservador e patrimonial, cuja órbita de atuação limitava-se a garantir eficácia da ordem informacional do acervo. Nesta direção de mão única, a primazia da ordem do acervo caminha em detrimento dos sujeitos que dele fazem uso; por esta razão, o novo serviço de informação foi idealizado sob novas premissas, configurando-se em ambiente especialmente concebido e desenvolvido, em seus diferentes aspectos espaciais, informacionais e culturais, com o objetivo de permitir o intercâmbio de narrativas entre diferentes gerações, em especial, idosos, crianças e jovens. Narrativas entendidas em seu sentido amplo, não apenas as literárias; narrativas resultantes da vida vivida, histórias de vida, experiências (BENJAMIN, 1993).

As pesquisas desenvolvidas pela Profa. Dra. Ivete Pieruccini (ECA/USP) são referências importantes para o estudo e desenvolvimento de novos procedimentos de mediação cultural em contextos de confinamento cultural. De acordo com a autora, a designação de Estação remete a uma metáfora implicada na concepção do dispositivo; o termo Estação quer indicar a noção dinâmica de memória que constitui e dá sentido a ele, ou seja, a memória tomada como matéria que se oferece à reelaboração pela linguagem e que, portanto, se renova, adquirindo diferentes nuanças, tons, coloridos. É nesse sentido, pois, que a Estação acolhe “seus passageiros”, permitindo novas visões de mundo por meio dos deslocamentos que a “viagem” proporciona a bordo das múltiplas experiências coexistentes e ali compartilhadas. As informações sobre o passado cultural ganham sentido, renovando tanto os repertórios como os sujeitos, independentemente das respectivas idades, possibilitando-lhes perceber que, na diferença (individual, social, cultural) que os define, possuem características que também os aproximam, fazendo-os compartilhar de desejos em comum.

Deixe um comentário